quarta-feira, 28 de agosto de 2013

A santificação segundo a oração sacerdotal de Jesus - Jo 17:17-21




Por Victor Breno                                                            

No último final de semana tive a oportunidade de compartilhar do evangelho com um grupo de jovens batistas por ocasião do aniversário do grupo, na cidade de Sarzedo – MG. O tema do encontro foi “Anseio por Santidade”, um assunto que a meu ver tem sido entendido de forma um tanto quanto controversa pela cultura evangélica e justamente por isso sugestivo de reflexão. As linhas que se seguem são a tentativa de uma breve transcrição dos pontos principais da minha fala no domingo de manhã por título “A santificação segundo Jesus” a partir do texto de João 17:17-21.

A santificação segundo a oração sacerdotal de Jesus – Jo 17:17-21

A doutrina da santificação é um tema de extrema importância e centralidade na espiritualidade da vida cristã de acordo com o evangelho de Jesus. Por causa disso, é imprescindível que compreendamos adequadamente o que de fato significa a santificação a partir das escrituras. Para tanto, queremos primeiramente fazer algumas ressalvas a respeito de como a cultura evangélica no nosso país entende essa doutrina, para que em seguida tratemos, em contraste, a concepção de Jesus a respeito da santificação.
Entendemos que a cultura evangélica compreende equivocadamente o tema da santificação. Ao analisamos o conteúdo e lógica dos discursos, músicas e artefatos manifestos pelo mercado gospel e praticadas por um grande número de nossas igrejas ditas evangélicas, podemos notar pelo menos quatro acepções feitas concernentes à santificação:

1)      Esforço humano – pessoal - de aquisição de uma alta moralidade religiosa e vitalidade ritualística
2)      Condição espiritual para canalização ou bloqueio da “bênção” de Deus
3)      Status moral-religioso de alienação do mundo
4)      Estágio espiritual de acesso e relações privilegiadas com o mundo sobrenatural

De acordo com minha compreensão do evangelho, entendendo ser também não apenas uma constatação pessoal, mas o lugar-comum da tradição cristã a esse respeito, estes modos de conceberem a santificação encontram-se significativamente em oposição ao ensino bíblico a respeito do tema. Longe de desenvolver um estudo sistemático da doutrina bíblica da santificação (esforço necessário, mas reservado para outra oportunidade) quero expor alguns pensamentos, em forma de proposições, extraídos das declarações de Jesus em sua oração – convencionalmente chamada de a oração sacerdotal – registrada no evangelho de João 17:17-21.

João 17:17-21
17 Santifica-os na verdade, a tua palavra é a verdade
18 Assim com tu me enviaste ao mundo, também eu os enviei ao mundo
19 E por eles me santifico a mim mesmo, para que também eles sejam santificados na verdade
20 Eu não rogo somente por estes, mas também por todos aqueles que, pela sua palavra, hão de crer em mim
21 para que todos sejam um, como tu, ó Pai, o és em mim, e eu, em ti; que eles também sejam um em nós, para que o mundo creia que tu me enviaste

1)      A santificação é uma obra de Deus operada em nós: “Santifica-os...”
Está clara a luz da declaração do texto que Jesus compreende a santificação não como uma realização humana ou decorrente dos esforços pessoais de se adquirir determinado status perante Deus, mas que é o próprio Deus que por sua auto volição, em graça e misericórdia, empenha-se em desenvolver a santificação em nós. A Deus pertence à iniciativa, os meios e resultados da santificação.

2)      A santificação é uma operação libertadora de Deus para nós: “Santifica-os na verdade...”
A verdade de Deus não é uma ideia subjetiva ou um conceito abstrato, mas uma realidade espiritual de dimensões concretas, a saber, a libertação. João 8:32 registra: “e conhecereis a verdade e a verdade vós libertará”. A santificação que Deus desenvolve em nós não é opressora, mas libertadora. Essa santificação nos livra pelo menos de duas formas de escravidão: da tirania prescritiva da lei vétero-testamentária e do domínio do pecado sobre as esferas do ser e da vida humana.

3)      Somos santificados pela palavra de Deus que é o próprio Cristo: “Santifica-os na verdade, a tua palavra é a verdade”
A ‘palavra de Deus’ que santifica não é o objeto “bíblia” como que por meio de uma operação mágica realizada em nós pelo ler, decorar, assimilar o texto. A ‘palavra de Deus’ aqui é o próprio Jesus, como o Verbo encarnado de Deus em favor da humanidade. A palavra de Deus que santifica é o ser de Cristo misticamente sendo formado e assimilado em nós. É seu caráter sendo produzido nas nossas vidas a ponto de nos tornamos “santos como ele é santo”.

4)      A santificação é uma experiência vocacional: Assim como tu me enviaste ao mundo, também eu os enviei ao mundo”
Aqueles a quem Deus santifica, libertando-os para viverem conforme a imagem do seu filho Jesus, também são chamados a responsabilidade da missão. A santificação não é uma realidade alienadora e descompromissada, mas envolve assumirmos o chamado “...eu os enviei...”, seguindo um modelo “assim como tu me enviaste...”, para um lugar “...ao mundo”. A santificação reclama a experiência de encontrarmos nossa vocação no reino de Deus para glória do seu nome no mundo que ele nos chama a missionar.

5)      A santificação é imputada a nós por mérito de Cristo: E por eles me santifico a mim mesmo, para que também eles sejam santificados na verdade”
A santificação não é resultado da observância de uma alta moralidade religiosa ou do esforço pessoal de nos colocarmos numa relação de privilégios para com Deus, mas de assumirmos e recebermos a obra realizada por Cristo na cruz por nós. Somente pelo mérito de Cristo conquistada pela sua completa obediência a Deus em favor da redenção da humanidade podemos ser considerados santos. O mérito da nossa santificação advém da imputação de sua santificação a nós.

6)      A santificação é recebida unicamente pela fé: Eu não rogo somente por estes, mas também por todos aqueles que, pela sua palavra, hão de crer em mim
Não existem barganhas ou quesitos morais e religiosos para se receber a obra da santificação. Segundo Jesus, aquele que crer nele pode receber a santificação. É um ato de fé onde aceitamos pela fé a obra que Cristo já fez por nós.

7)      A santificação tem como objetivo a plena comunhão horizontal e vertical: para que todos sejam um, como tu, ó Pai, o és em mim, e eu, em ti; que eles também sejam um em nós...”
Quando Deus nos santifica ele visa, assim como acontece na economia trinitária, estabelecer uma relação plena entre os indivíduos. As barreiras da inimizade são desfeitas e o ser humano pode ser reconciliado com seu próximo tornando-se irmão e seu responsável. Também a santificação restaura nossa comunhão com Deus, a luz da relação que Cristo tem com seu Pai. A santificação é uma obra e um convite a uma relação verdadeira com o próximo e de intimidade com Deus.

8)      A santificação desemboca finalmente no testemunho de Cristo ao mundo: ”...para que o mundo creia que tu me enviaste.”
A razão principal da santificação segundo Jesus não é fazer seres moral-religiosamente melhores para vanglória destes, mas que a santidade expressada através das suas vidas seja um tipo de espelho que reflete e aponta para o “santo”, que é Jesus Cristo. Esse critério nos desafia a avaliarmos nossa espiritualidade a partir da oração de Jesus por santificação dos seus, para que entendemos que a santificação termina sempre em testemunho, sinal, profecia e anúncio.

sábado, 16 de fevereiro de 2013

# Experiência VERSUS Palavra de Deus



por Alessandro Flugel

Infelizmente no cenário Pentecostal valoriza-se mais a experiência em detrimento da Palavra de Deus. Qualquer espécie de experiência seja ela pessoal e/ou coletiva não serve como elemento fundante de dogma, costume, ou prática religiosa. Lógico, não estou desvalorizando as “experiências”, mesmo por que a nossa fé é mística, porém, não pode se tornar misticista. Neste sentido, qualquer experiência sobrenatural que se tenha ou que se presencie, deve sempre ser atestada pelos parâmetros bíblico-teológicos.
Assim, preocupa-me a exacerbada busca por fenômenos sobrenaturais/dons espirituais na prerrogativa que isso motiva, impulsiona, dá unção, etc. O que de fato precisamos é nos pautar na Palavra de Deus, pois dela vem poder de Deus, entendimento, compreensão, capacitação. Qualquer experiência sobrenatural e/ou dom espiritual desprovido de fruto do Espírito se torna vão. Torna-se apenas uma prática ativista.
Em suma, a Bíblia é a nossa única regra de fé e prática. Por isso, devemos ter cuidado para não fazermos leituras celetistas na Bíblia, buscando textos que embasem nossas experiências, pois se assim procedermos, certamente encontraremos.
Fica a dica, leiamos a Bíblia no todo, não escolhendo textos isolados para justificar nossas práticas.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Faces da modernidade religiosa: cenários e dinâmicas do campo religioso contemporâneo [PARTE 1]



por Victor Breno


A seguir, uma série de fragmentos textuais articulados em torno da problemática da modernidade religiosa. O produto, de caráter provisório, é resultado da socialização de algumas reflexões realizadas em um curso de curta duração sobre o tema. A proposta da pesquisa é compreender – dentro das possibilidades teóricas disponíveis em referencias especializadas - o movimento do religioso nas tramas da condição histórico-cultural contemporânea. O que se apresentará é uma síntese, devendo-se levar em consideração este aspecto durante a apreciação do conteúdo.
Como vêm a ser um estudo de orientação sociológica, voltado a um público de interesse particular, o teológico, é preciso delinear e demarcar as trilhas metodológicas que compõe o quadro de análise. Em correspondência com a opção já acima assinalada, o primeiro destaque diz respeito à observação do fenômeno desde a sociologia, em especial, à contribuição de pesquisadores alocados dentro das pesquisas atuais no tema. O segundo, também dito a pouco, direciona o discurso desde a pertinência aos estudos teológicos, ou seja, seleciona dentro do amplo campo posto os tópicos que contribuíram diretamente para o enriquecimento da reflexão na área.
Terceiro, dizemos “modernidade religiosa” em referência ao religioso em sua situação experimentada nos diversos contextos culturais na atualidade. Significa não falar de uma tradição religiosa em particular ou suas expressões em determinado contexto geográfico, mas sim, do fenômeno religioso nas várias formas em que se apresenta hoje pelo mundo, levando em considerando certamente as diferença existentes dos processos históricos de cada contexto. Por último, afirmar os alcances e limitações de um esforço como este. Devido o caráter extremamente complexo do assunto e ao tempo reduzido para sua exposição, seu tratamento é introdutório, vislumbrando um passeio panorâmico para novos e antigos interessados.
Um empreendimento nestes termos só se torna sensato desde quando persegue determinadas perguntas, questões norteadoras para as quais quer dar respostas. As inquietações aqui tomam quatro fórmulas que correspondem respectivamente com a sequência em que serão trabalhadas:

 
Problemática central
Temática discutida
Quais as transformações ocasionadas pela modernidade secular no campo religioso?
 
Os impactos da modernidade secularizada sobre a religião
Como se compõe a paisagem religiosa nestes tempos de mudança?
 
A paisagem religiosa fragmentada: o triplo movimento do religioso na contemporaneidade
Quais novos tendências religiosas se apresentam atualmente?
 
Mudanças e tendências no campo religioso atual
Como se configura a experiência religiosa nesta condição moderna?
 
Características e lógicas da religiosidade pós-moderna: os novos
 
Vale oferecer também uma pequena, mas rica, lista de refências bibliográficas selecionadas entre tantas outras fontes, dando prioridade a obras do gênero de "livros" de língua portuguesa e espanhola.
*Os outros textos serão liberados aos poucos, para "facilitar" a leitura.
 
Referências
BOBINEAU, Olivier; TANK-STORPER, Sébastien. Sociologia das religiões. Loyola: São Paulo, 2011.
GUERRIERO, Silas. Novos movimentos religiosos: o quadro brasileiro. São Paulo: Paulinas, 2006.
HERVIEU-LÉGER, Danièle. O peregrino e o convertido: a religião em movimento. Petrópolis: Vozes, 2008.
LIBÂNIO, João Batista. A religião no início do milênio. Loyola: São Paulo, 2002.
MARDONES, José María. Para compreender las nuevas formas de la religion. Spain: Editorial Verbo Divino, 1994.
MARTELLI, Stefano. A religião na sociedade pós-moderna. São Paulo: Paulinas, 1995.
MOREIRA, Alberto da Silva; OLIVEIRA, Irene Dias. O futuro da religião na sociedade global: uma perspectiva multicultural. São Paulo: Paulinas, 2008.
SANCHES, Wagner Lopes. Pluralismo religioso: as religiões no mundo atual. São Paulo: Paulinas, 2005.
VELASCO, Martín Juan. El malestar religioso de nuestra cultura. Madrid: Ediciones Paulinas, 1993.
WILLAIME, Jean-Paul. Sociologia das religiões. São Paulo: Editora Unesp, 2012.

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Apenas observar

por Victor Breno

     Talvez nenhuma das experiências da espécie humana seja tão significativamente representativa quanto à da contemplação estética. Ela parece ser aquele momento inominável do qual a percepção da transcendentalidade do mundo dado, a nós, se manifesta. A opacidade do conceito não apreende sua significância deixando-lhe escapar justamente aquilo em que consiste sua essência. Maravilhados, somos tomados por sensações as mais diversas, diante do que nos açula às realidades mais intimas do ser e sua relação com o universo.

     Não por acaso o fenomenólogo Rudolf Otto ao tentar argumentar sobre as relações dos elementos irracionais e racionais da noção divina tem de recorrer à experiência musical como comparação expressiva dos sentimentos do mysterium tremendum, visto que o aparato gramatical a sua disposição deflagra uma incapacidade de categorização. Exemplo para nós hoje vem dos filões da música erudita, rememorando clássicos como os concertos de Tchaikovsky ou as peças de Wagner que encantam pela beleza fascinas e que apontam para dimensões que os mais elaborados argumentos não alcançam.

     Por certo é que não apenas filósofos, mas principalmente os artistas e poetas, reproduziram os conteúdos mais abscônditos da vida em suas multiformes expressões. A arte constitui-se como argumentação privilegiada sobre a constituição da condição do existir. Um dado também é importante destacar: apreciar e ser provocado pela arte de Toulouse-Lautrec, Diego Velásquez ou Goya, por exemplo, deixa de ser programa de burguês/intelectual e passa a ser um exercício particular de refinamento do espírito que busca uma existência histórica comprometida com a vida.

     Outro exemplo como modelo. Apesar dos tempos relativamente cépticos do século XIX na Europa no que diz respeito à religião, o francês Victor Eugène Delacroix deflagra a cena mais dramática do evangelho, a crucificação do deus-homem na cruz. Com a capacidade extraordinária de representar o episódio climax do cristiasnimo pela pintura, largo as palavras das quais são secundária neste exercício de obsevação e deixo que o quadro fale...



quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Nietzsche - intrigante, demasiado intrigante (Última parte)



por Victor Breno

A morte de Deus e o niilismo

Nunca ouviram falar do louco que acendia uma lanterna em pleno dia e desatava a correr pela praça pública gritando sem cessar: ‘Procuro Deus! Procuro Deus!’ Mas como havia ali muitos daqueles que não acreditam em Deus, o seu grito provocou grande riso. ‘ Ter-se-á perdido como uma criança?’ dizia um. ‘Estará escondido? Terá medo de nós? Terá embarcado? Terá emigrado?’. Assim gritavam e riam todos ao mesmo tempo. O louco saltou no meio deles e trespassou-os com o olhar. ‘ Para onde foi Deus?’, exclamou, é o que vou lhes dizer. Matamo-lo... vocês e eu! Somos nós, todos nós, que somos seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como conseguimos isso? Como conseguimos esvaziar o mar? Quem nos deu uma esponja para apagar o horizonte inteiro? Que fizemos quando desprendemos a corrente que ligava esta terra ao sol Para onde vai ela agora? Para onde vamos nós próprios? Longe de todos os sóis? Não estaremos incessantemente a cair? Para diante, para trás, para o lado, para todos os lados? Haverá ainda um acima, uma abaixo? Não estaremos errando através de um vazio infinito? Não sentiremos na face o sopro do vazio? Não fará mais frio? Não aparecem sempre noites? Não será preciso acender os candeeiros logo de manhã? Não ouvimos ainda nada do barulho que fazem os coveiros que enterram Deus? Ainda não sentimos nada da decomposição divina...? Os deuses também se decompõe! Deus morreu! Deus continua morto! E fomos nós que o matamos! Como haveremos de nos consolar, nós, assassinos entre os assassinos! O que o mundo possui de mais sagrado e de mais poderoso até hoje sangrou sob nosso punhal. Quem nos há de limpar desde sangue? Que água nos poderá lavar? Que expiações, que jogo sagrado seremos forçados a inventar? A grandeza deste ato é demasiado grande para nós. Não será preciso que nós próprios nos tornemos deuses para, simplesmente, parecermos digno dela? Nunca houve ação mais grandiosa e, quaisquer que sejam, aqueles que poderão nascer depois de nós pertencerão, por causa dela, a uma historia mais elevada do que, até aqui, nunca o foi qualquer história.[1]

O tema da morte de Deus é Nietzsche é chave interpretativa para toda a sua reflexão filosófica. Interessante observar, que a declaração de que Deus está morto, não se dirige apenas e tão somente a religião. Diz respeito a toda a aquela construção da cultura metafísica que modulou a moral na consciência dos indivíduos até então. Com o já citado advento do progresso trazido pela modernidade o homem acaba tornando-se o centro do universo jogando para bem longe toda e qualquer idéia transcendental. Dessa forma, as pessoas já teriam matado Deus, inconscientemente, causa do sarcasmo que vemos na sua citação acima.
 Todavia é contra a religião e principalmente contra a moral cristã que ele argumenta as mais ferrenhas críticas. Para Nietzsche, a religião é o meio de autodestruição do potencial humano. Ela limita o desenvolvimento próprio do individuo fazendo com que ele se torne medíocre e tenha uma existência desumanizaste.
A religião teria gerado homens e mulheres em fracos e escravo de uma esperança “além” que não existia e alienava a todos. A crença em Deus roubou do ser humano a sua maior virtude, à vontade, fazendo dele um capacho. Deixemos que o próprio Nietzsche se exponha:

 Condeno o cristianismo; lanço contra a Igreja cristã a mais terrível de todas as acusações que jamais lançou um acusador. Ela é, para mim, a maior de todas as corrupções imagináveis; procura levar a cabo a corrupção suprema, a pior corrupção possível. A Igreja cristã nada deixou imune à sua depravação; transformou cada valor em desvalor, cada verdade em mentira, cada integridade em baixeza de caráter (...). Denuncio o cristianismo como a grande praga, a grande depravação intrínseca, o grande instinto de vingança, para o qual nenhum meio é bastante venenoso, ou bastante secreto, subterrâneo e mesquinho; eu o denuncio como a mácula imortal da raça humana...[2]
Nunca houve religião que contivesse, nem mediata, nem imediatamente, nem em dogma nem em parábola, uma verdade. Porque foi de inquietação e da necessidade que cada religião nasceu. Foi através dos erros da razão que a religião se insinuou na existência; terá talvez, ao ver-se posta em perigo pela ciência, introduzindo falsamente uma teoria filosófica no seu sistema, para que ali a encontrem estabelecida mais tarde; mas trata-se de artimanha de teólogos, surgida no tempo em que uma religião duvida já de si própria.[3]
O cristianismo defendeu tudo quanto é fraco, baixo, pálido, fez um ideal da oposição aos instintos de conservação da vida potente; até corrompeu a razão das naturezas intelectualmente poderosas, ensinando que os valores superiores da intelectualidade não passam de pecados, extravios e tentações.[4]
Chamo o cristianismo a única grande calamidade, a única grande perversão interna, o único grande instinto de ódio, que não encontra meios bastante venenosos, suficientemente subterrâneos, bastante pequenos; o título, única e imortal desonra da humanidade.[5]
                                  
Nesta perspectiva, a liberdade humana só é alcançada com a morte de Deus. Essas citações são argumentos, e não apenas esses mais muitos outros encontrados em suas obras, atestam os vereditos afirmados sobre o pensamento de Nietzsche sobre a religião e Deus.
A perda dos referenciais morais do ser humano – declarado com a morte de Deus que era o fundamento de convergência do sentido das coisas - o leva inevitavelmente ao sentimento de “perder dos pés o chão”. Zilles diz que:
...o niilismo é a desvalorização de todos os valores tradicionais: moral, metafísica e religião. Chega-se ao fim da história desses valores. Por outro, o niilismo anuncia já nova visão. É sinal de decadência, de degeneração da vida, ou seja, torna visível a decadência da tradição. (...) O niilismo é histórico, ou seja, um fenômeno que se pode experimentar. Um de seus aspectos é a morte de Deus. O lugar de Deus foi ocupado pelo nada. De outro lado, o advento do niilismo é necessário porque todos os valores serão desvalorizados. Para Nietzsche, os valores em si nada são; são apenas criação do homem[6].

            Todavia, o niilismo é condição necessária para que o indivíduo possa avançar no seu processo de tomada de consciência real do mundo e da vida.

O super-homem e o poder da vontade

O ateísmo não é conclusão de uma dedução lógica em Nietzsche, mas antes, uma tomada de atitude, pelo poder da vontade, gerando assim um super-homem. Só eliminando deliberadamente do nosso pensamento a idéia de Deus – o sistema de moralidade do mundo – é que se alcançará plena liberdade.

Não é isso que nos destaca, não encontramos nenhum deus nem na história nem na natureza, nem por trás da natureza - mas sim sentirmos aquilo que foi venerado como Deus, não como ‘divino’, mas como digno de lástima, como absurdo, como pernicioso, não somente como erro, mas como crime contra a própria vida... Negamos Deus como deus... Se nos provassem esse deus dos cristãos, saberíamos ainda menos acreditar nele.[7]

Esse super-homem nada se assemelha aquele das histórias em quadrinhos, mas antes, é o ser que tem em si a vontade do poder, capaz de determinar sua própria vida. Super-homem é o indivíduo forjando seus plenos valores em liberdade, livrando-se da moralidade cristã e assumindo a responsabilidade de suas ações.
A idéia de poder da vontade vem de suas influencias acadêmicas, Schopenhauer e os gregos antigos. O poder da vontade seria esse impulso básico de todos ser humano de autoelevar-se rompendo justamente com o adestramento moral proposto pelo cristianismo em suas predicas evangélicas.  
Em, Assim falava Zaratustra, aparece-nos três metáforas para falar das metamorfoses que decorrem da morte de Deus gerando o super-homem. A primeira é que fala da passagem do camelo, o ser grande que se submete a Deus, para o leão, que no deserto luta contra a moral e contra Deus criando a liberdade. O segundo momento é a da passagem do leão para a criança, que é admirada com a realidade e possui a liberdade criativa[8].
Segundo essa idéia, o indivíduo não pode aceitar passivamente idéias ou situações que vem ao seu encontro, devendo forçar sua vontade contra elas, mediante uma revolta apropriada de modo a conseguir modificar segundo os seus desejos. Assim, o super-homem seria o único homem verdadeiro. O super-homem é aquele que através do seu poder da vontade lança de fora a mediocridade e atinge a excelência. Seria o ser ideal, mais ao mesmo tempo real.
Nietzsche também destacava dois tipos de sistemas morais, a do escravo e a do senhor. A moral do escravo seria aquela de submissão, levada pelo cristianismo, e que inibiria o potencia humano, gerando uma estagnação nesse. A moral do senhor por outro lado, pelo poder da vontade, impõe-se diante da vida e a ela subjuga conforme suas vontades.
Nietzsche a esse respeito diz:

Mas agora este Deus está morto. Homens superiores, esse Deus era vosso maior perigo. Só desde que ele jaz na tumba voltastes a ressuscitar. Só agora chega o grande meio-dia, só agora o homem superior se converte em Senhor.
O super-homem está muito dentro de meu coração. E a primeira e única coisa – não o homem.
Todos os deuses morreram; agora viva o super-homem[9].
Não considero o ateísmo como resultado, e ainda menos como um fato; para mim, o ateísmo é forma estrutural de ser. Sou demasiado curioso, demasiado problemático, demasiado orgulhoso, para contentar-me com respostas grosseiras. Deus é uma resposta grosseira, uma indelicadeza para nós outros, pensadores: no fundo, é simplesmente grosseira proibição. É o mesmo que dizer-nos: Não deveis pensar![10]


[1] NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência, § 62, p.145-46.
[2] NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo, § 62, p. 126,127.
[3] NIETZSCHE, Friedrich. Humano demasiado humano, §110, p, 130.
[4] NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo, § 5, p. 16.
[5] NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo, p. 116.
[6] Ibid, p. 174.
[7] NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo, § 47, p. 363
[8] ZILLES, Urbano. Filosofia da religião, p.171.
[9] NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra, p. 60.
[10] NIETZSCHE, Friedrich.  Ecco Homo, p. 36.