quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Apenas observar

por Victor Breno

     Talvez nenhuma das experiências da espécie humana seja tão significativamente representativa quanto à da contemplação estética. Ela parece ser aquele momento inominável do qual a percepção da transcendentalidade do mundo dado, a nós, se manifesta. A opacidade do conceito não apreende sua significância deixando-lhe escapar justamente aquilo em que consiste sua essência. Maravilhados, somos tomados por sensações as mais diversas, diante do que nos açula às realidades mais intimas do ser e sua relação com o universo.

     Não por acaso o fenomenólogo Rudolf Otto ao tentar argumentar sobre as relações dos elementos irracionais e racionais da noção divina tem de recorrer à experiência musical como comparação expressiva dos sentimentos do mysterium tremendum, visto que o aparato gramatical a sua disposição deflagra uma incapacidade de categorização. Exemplo para nós hoje vem dos filões da música erudita, rememorando clássicos como os concertos de Tchaikovsky ou as peças de Wagner que encantam pela beleza fascinas e que apontam para dimensões que os mais elaborados argumentos não alcançam.

     Por certo é que não apenas filósofos, mas principalmente os artistas e poetas, reproduziram os conteúdos mais abscônditos da vida em suas multiformes expressões. A arte constitui-se como argumentação privilegiada sobre a constituição da condição do existir. Um dado também é importante destacar: apreciar e ser provocado pela arte de Toulouse-Lautrec, Diego Velásquez ou Goya, por exemplo, deixa de ser programa de burguês/intelectual e passa a ser um exercício particular de refinamento do espírito que busca uma existência histórica comprometida com a vida.

     Outro exemplo como modelo. Apesar dos tempos relativamente cépticos do século XIX na Europa no que diz respeito à religião, o francês Victor Eugène Delacroix deflagra a cena mais dramática do evangelho, a crucificação do deus-homem na cruz. Com a capacidade extraordinária de representar o episódio climax do cristiasnimo pela pintura, largo as palavras das quais são secundária neste exercício de obsevação e deixo que o quadro fale...



quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Nietzsche - intrigante, demasiado intrigante (Última parte)



por Victor Breno

A morte de Deus e o niilismo

Nunca ouviram falar do louco que acendia uma lanterna em pleno dia e desatava a correr pela praça pública gritando sem cessar: ‘Procuro Deus! Procuro Deus!’ Mas como havia ali muitos daqueles que não acreditam em Deus, o seu grito provocou grande riso. ‘ Ter-se-á perdido como uma criança?’ dizia um. ‘Estará escondido? Terá medo de nós? Terá embarcado? Terá emigrado?’. Assim gritavam e riam todos ao mesmo tempo. O louco saltou no meio deles e trespassou-os com o olhar. ‘ Para onde foi Deus?’, exclamou, é o que vou lhes dizer. Matamo-lo... vocês e eu! Somos nós, todos nós, que somos seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como conseguimos isso? Como conseguimos esvaziar o mar? Quem nos deu uma esponja para apagar o horizonte inteiro? Que fizemos quando desprendemos a corrente que ligava esta terra ao sol Para onde vai ela agora? Para onde vamos nós próprios? Longe de todos os sóis? Não estaremos incessantemente a cair? Para diante, para trás, para o lado, para todos os lados? Haverá ainda um acima, uma abaixo? Não estaremos errando através de um vazio infinito? Não sentiremos na face o sopro do vazio? Não fará mais frio? Não aparecem sempre noites? Não será preciso acender os candeeiros logo de manhã? Não ouvimos ainda nada do barulho que fazem os coveiros que enterram Deus? Ainda não sentimos nada da decomposição divina...? Os deuses também se decompõe! Deus morreu! Deus continua morto! E fomos nós que o matamos! Como haveremos de nos consolar, nós, assassinos entre os assassinos! O que o mundo possui de mais sagrado e de mais poderoso até hoje sangrou sob nosso punhal. Quem nos há de limpar desde sangue? Que água nos poderá lavar? Que expiações, que jogo sagrado seremos forçados a inventar? A grandeza deste ato é demasiado grande para nós. Não será preciso que nós próprios nos tornemos deuses para, simplesmente, parecermos digno dela? Nunca houve ação mais grandiosa e, quaisquer que sejam, aqueles que poderão nascer depois de nós pertencerão, por causa dela, a uma historia mais elevada do que, até aqui, nunca o foi qualquer história.[1]

O tema da morte de Deus é Nietzsche é chave interpretativa para toda a sua reflexão filosófica. Interessante observar, que a declaração de que Deus está morto, não se dirige apenas e tão somente a religião. Diz respeito a toda a aquela construção da cultura metafísica que modulou a moral na consciência dos indivíduos até então. Com o já citado advento do progresso trazido pela modernidade o homem acaba tornando-se o centro do universo jogando para bem longe toda e qualquer idéia transcendental. Dessa forma, as pessoas já teriam matado Deus, inconscientemente, causa do sarcasmo que vemos na sua citação acima.
 Todavia é contra a religião e principalmente contra a moral cristã que ele argumenta as mais ferrenhas críticas. Para Nietzsche, a religião é o meio de autodestruição do potencial humano. Ela limita o desenvolvimento próprio do individuo fazendo com que ele se torne medíocre e tenha uma existência desumanizaste.
A religião teria gerado homens e mulheres em fracos e escravo de uma esperança “além” que não existia e alienava a todos. A crença em Deus roubou do ser humano a sua maior virtude, à vontade, fazendo dele um capacho. Deixemos que o próprio Nietzsche se exponha:

 Condeno o cristianismo; lanço contra a Igreja cristã a mais terrível de todas as acusações que jamais lançou um acusador. Ela é, para mim, a maior de todas as corrupções imagináveis; procura levar a cabo a corrupção suprema, a pior corrupção possível. A Igreja cristã nada deixou imune à sua depravação; transformou cada valor em desvalor, cada verdade em mentira, cada integridade em baixeza de caráter (...). Denuncio o cristianismo como a grande praga, a grande depravação intrínseca, o grande instinto de vingança, para o qual nenhum meio é bastante venenoso, ou bastante secreto, subterrâneo e mesquinho; eu o denuncio como a mácula imortal da raça humana...[2]
Nunca houve religião que contivesse, nem mediata, nem imediatamente, nem em dogma nem em parábola, uma verdade. Porque foi de inquietação e da necessidade que cada religião nasceu. Foi através dos erros da razão que a religião se insinuou na existência; terá talvez, ao ver-se posta em perigo pela ciência, introduzindo falsamente uma teoria filosófica no seu sistema, para que ali a encontrem estabelecida mais tarde; mas trata-se de artimanha de teólogos, surgida no tempo em que uma religião duvida já de si própria.[3]
O cristianismo defendeu tudo quanto é fraco, baixo, pálido, fez um ideal da oposição aos instintos de conservação da vida potente; até corrompeu a razão das naturezas intelectualmente poderosas, ensinando que os valores superiores da intelectualidade não passam de pecados, extravios e tentações.[4]
Chamo o cristianismo a única grande calamidade, a única grande perversão interna, o único grande instinto de ódio, que não encontra meios bastante venenosos, suficientemente subterrâneos, bastante pequenos; o título, única e imortal desonra da humanidade.[5]
                                  
Nesta perspectiva, a liberdade humana só é alcançada com a morte de Deus. Essas citações são argumentos, e não apenas esses mais muitos outros encontrados em suas obras, atestam os vereditos afirmados sobre o pensamento de Nietzsche sobre a religião e Deus.
A perda dos referenciais morais do ser humano – declarado com a morte de Deus que era o fundamento de convergência do sentido das coisas - o leva inevitavelmente ao sentimento de “perder dos pés o chão”. Zilles diz que:
...o niilismo é a desvalorização de todos os valores tradicionais: moral, metafísica e religião. Chega-se ao fim da história desses valores. Por outro, o niilismo anuncia já nova visão. É sinal de decadência, de degeneração da vida, ou seja, torna visível a decadência da tradição. (...) O niilismo é histórico, ou seja, um fenômeno que se pode experimentar. Um de seus aspectos é a morte de Deus. O lugar de Deus foi ocupado pelo nada. De outro lado, o advento do niilismo é necessário porque todos os valores serão desvalorizados. Para Nietzsche, os valores em si nada são; são apenas criação do homem[6].

            Todavia, o niilismo é condição necessária para que o indivíduo possa avançar no seu processo de tomada de consciência real do mundo e da vida.

O super-homem e o poder da vontade

O ateísmo não é conclusão de uma dedução lógica em Nietzsche, mas antes, uma tomada de atitude, pelo poder da vontade, gerando assim um super-homem. Só eliminando deliberadamente do nosso pensamento a idéia de Deus – o sistema de moralidade do mundo – é que se alcançará plena liberdade.

Não é isso que nos destaca, não encontramos nenhum deus nem na história nem na natureza, nem por trás da natureza - mas sim sentirmos aquilo que foi venerado como Deus, não como ‘divino’, mas como digno de lástima, como absurdo, como pernicioso, não somente como erro, mas como crime contra a própria vida... Negamos Deus como deus... Se nos provassem esse deus dos cristãos, saberíamos ainda menos acreditar nele.[7]

Esse super-homem nada se assemelha aquele das histórias em quadrinhos, mas antes, é o ser que tem em si a vontade do poder, capaz de determinar sua própria vida. Super-homem é o indivíduo forjando seus plenos valores em liberdade, livrando-se da moralidade cristã e assumindo a responsabilidade de suas ações.
A idéia de poder da vontade vem de suas influencias acadêmicas, Schopenhauer e os gregos antigos. O poder da vontade seria esse impulso básico de todos ser humano de autoelevar-se rompendo justamente com o adestramento moral proposto pelo cristianismo em suas predicas evangélicas.  
Em, Assim falava Zaratustra, aparece-nos três metáforas para falar das metamorfoses que decorrem da morte de Deus gerando o super-homem. A primeira é que fala da passagem do camelo, o ser grande que se submete a Deus, para o leão, que no deserto luta contra a moral e contra Deus criando a liberdade. O segundo momento é a da passagem do leão para a criança, que é admirada com a realidade e possui a liberdade criativa[8].
Segundo essa idéia, o indivíduo não pode aceitar passivamente idéias ou situações que vem ao seu encontro, devendo forçar sua vontade contra elas, mediante uma revolta apropriada de modo a conseguir modificar segundo os seus desejos. Assim, o super-homem seria o único homem verdadeiro. O super-homem é aquele que através do seu poder da vontade lança de fora a mediocridade e atinge a excelência. Seria o ser ideal, mais ao mesmo tempo real.
Nietzsche também destacava dois tipos de sistemas morais, a do escravo e a do senhor. A moral do escravo seria aquela de submissão, levada pelo cristianismo, e que inibiria o potencia humano, gerando uma estagnação nesse. A moral do senhor por outro lado, pelo poder da vontade, impõe-se diante da vida e a ela subjuga conforme suas vontades.
Nietzsche a esse respeito diz:

Mas agora este Deus está morto. Homens superiores, esse Deus era vosso maior perigo. Só desde que ele jaz na tumba voltastes a ressuscitar. Só agora chega o grande meio-dia, só agora o homem superior se converte em Senhor.
O super-homem está muito dentro de meu coração. E a primeira e única coisa – não o homem.
Todos os deuses morreram; agora viva o super-homem[9].
Não considero o ateísmo como resultado, e ainda menos como um fato; para mim, o ateísmo é forma estrutural de ser. Sou demasiado curioso, demasiado problemático, demasiado orgulhoso, para contentar-me com respostas grosseiras. Deus é uma resposta grosseira, uma indelicadeza para nós outros, pensadores: no fundo, é simplesmente grosseira proibição. É o mesmo que dizer-nos: Não deveis pensar![10]


[1] NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência, § 62, p.145-46.
[2] NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo, § 62, p. 126,127.
[3] NIETZSCHE, Friedrich. Humano demasiado humano, §110, p, 130.
[4] NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo, § 5, p. 16.
[5] NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo, p. 116.
[6] Ibid, p. 174.
[7] NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo, § 47, p. 363
[8] ZILLES, Urbano. Filosofia da religião, p.171.
[9] NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra, p. 60.
[10] NIETZSCHE, Friedrich.  Ecco Homo, p. 36.

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Nietzsche - intrigante, demasiado intrigante (parte 2)






por Victor Breno



A problemática sobre Deus sempre foi ponto central na reflexão especulativa da filosofia ocidental. Convencionalmente chamada também de metafísica, tinha como objetivo descrever e elucubrar inteligivelmente a respeito das dimensões além-empíricas do mundo. Labutava em tratar dos problemas centrais da filosofia teórica: Existe um Deus? A um sentido último para a existência humana? Para onde caminha a história e a humanidade? A metafísica tornou-se uma das disciplinas fundamentais dos sistemas filosóficos desde o nascimento da filosofia até o século XIX.
Até Nietzsche, todos os filósofos ocidentais começaram e desenvolveram seus sistemas filosóficos tendo metafísica como seu início e o seu mais alto ponto de reflexão. Desde Aristóteles, passando por nomes como Agostinho, Tomás de Aquino, Leibniz, Spinoza, Kant, a problemática de Deus sempre instigou a consciência filosófica durante as épocas.
Todavia, diferentemente dos seus antecessores, Nietzsche pretende orienta sua filosofia dentro de um espaço mais prático e em crítica radical a tudo o que existia já não seguindo esquemas conceituais nem cosmovisões esquematizadas. Em sua filosofia, ele rompe com a reflexão metafísica, dando início ao período chamado de pós-metafísico. Isso não exclui totalmente a filosofia metafísica, mas sim seu aspecto objetivo. Estabelece uma nova forma de filosofar, começando agora com a problemática da moral e fundamentando o neo-ateísmo, um tipo de crítica religiosa com aspectos mais práticos existencialmente. Para Penzo, em Nietzsche não existe uma crise no pensamento metafísico, mas uma metamorfose desde, tornando a crise a dimensão fundante do divino pós-metafísico[1].
A Europa de Nietzsche, do século XIX, vivia em meio à grande clímax de progresso científico e tecnológico. Com o processo contínuo de dessacralização do estado, secularização dos espaços privados e públicos da sociedade e o desencantamento das estruturas de pensamento dos indivíduos começa-se a perguntar: faz diferença crer em Deus? Faz diferença acreditar que ele não existe? Neste processo de formação de uma nova cultura surge Nietzsche, declarando que “Deus morreu”. Ele critica a religião e a Deus como inimigo do potencial humano e que eram como ervas daninhas contra a vida. Para ele a moral cristã só trouxe conformismo e mediocridade aos homens.
Na tentativa de sintetizar e esquematizar seu pensamento, cinco temas centrais que perpassam sua filosofia do início ao fim podem ser postos: a morte de Deus, o niilismo, o super-homem, a vontade de potência e o eterno retorno. Acredito que, tomando e entendendo brevemente cada um desses conceitos de Nietzsche, poderemos chegar a uma compreensão mais clara a respeito de sua idéia sobre Deus.


[1] PENZO, Giorgio, GIBELLINI, Rosino. Deus na filosofia do século XX, p. 14.